Violência nem sempre é visível

Os 15 anos da Lei Maria da Penha

O tema de hoje, como você já notou no título, é a violência contra a mulher.

Não precisamos de uma data pra discutir a gravidade dessa questão até porque basta fazer uma pesquisa pelo termo “mulher” no Google e clicar na aba de notícias para receber logo nos primeiros resultados uma longa relação de casos de violência. Nossa pesquisa não é com as palavras “agressão” ou “estupro”, mas sim “mulher”, o que demonstra que a violência é cotidiana.

Falei que não precisamos de uma data para fazer essa discussão tão importante, mas no caso temos: no dia 7 de agosto a Lei Maria da Penha completa 15 anos. Vamos conversar?

A lei 

A Lei Maria da Penha criou mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Foi necessária uma luta de mais de 19 anos para Maria da Penha conseguir justiça contra seu agressor. Mas você conhece a sua história?

Quem é Maria da Penha?

Maria da Penha Maia Fernandes é farmacêutica bioquímica com mestrado em parasitologia em análises clínicas. Uma mulher da ciência que teve a oportunidade de avançar nos estudos e como tantas outras vítimas é um exemplo de que a violência não acontece apenas com mulheres em situação de vulnerabilidade social.

Pode acontecer com todas nós.

Maria da Penha conheceu seu parceiro Marco Antonio Heredia Viveros quando estava cursando o mestrado na USP em 1974. Nessa época, ele que é colombiano também fazia os seus estudos de pós-graduação lá. Após dois anos de namoro eles se casaram.

O casal já tinha duas filhas quando a relação começou a mudar.

 

Marco Antonio Heredia Viveros conseguiu a cidadania brasileira e estava em um momento estável na carreira quando começou a apresentar comportamentos explosivos, não só com a Maria mas também com as filhas.

A família vivia o tradicional ciclo da violência, com tensão diária que culminava em um ato de violência e era seguido por arrependimento e comportamento carinhoso. Foi nesse contexto da “lua de mel” pós-agressão que o casal teve sua terceira filha, como uma promessa e expectativa de mudança.

Os episódios de violência começaram a ocorrer em períodos mais curtos de tempo e em 1983 algo mais grave aconteceu: Maria da Penha foi vítima de duas tentativas de feminicídio.

A primeira foi com um tiro em suas costas enquanto ela dormia, que culminou em lesões nas vértebras. Maria ficou paraplégica. Marco Antonio alegou que a esposa havia passado por uma tentativa de assalto. Após cirurgias e tratamentos, ela voltou para casa e o marido tentou eletrocutá-la durante o banho.

Com ajuda da família e amigos, Maria da Penha conseguiu apoio jurídico para sair de casa sem que isso se configurasse como abandono de lar, afinal ela não queria perder a guarda das filhas.

E assim começou sua luta por justiça. Maria da Penha foi novamente vítima de violência, mas dessa vez pelo Poder Judiciário. Marco Antonio foi a julgamento oito anos depois de seu crime, sentenciado a 15 anos de prisão, mas teve recursos aceitos e saiu em liberdade.

O segundo julgamento aconteceu em 1996, com a condenação de 10 anos e 6 meses de prisão. Marco Antonio novamente pode recorrer em liberdade e sua pena caiu para 8 anos e 6 meses.

Maria da Penha escreveu o livro “Sobrevivi… posso contar” com o relato de sua história e os andamentos do processo contra Marco Antonio.

Em 1998 foi encaminhada uma denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) que acusava o Estado por omissão no caso de Maria da Penha. Em 2001, após o envio de quatro ofícios da CIDH/OEA, o Estado foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.

Em outubro de 2002, após 19 anos e 6 meses, Marco Antonio foi preso. Ele passou 16 meses em regime fechado e a partir de 2004 pode cumprir a pena em regime semiaberto.

Após muitos debates entre o Legislativo, o Executivo e a sociedade, o Projeto de Lei que viria a se chamar “Lei Maria da Penha” foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas (Câmara e Senado). Em 2006 a lei foi sancionada pelo Governo Federal.

Em 2007 Marco Antonio conseguiu liberdade condicional e sua pena terminou em fevereiro de 2012. Na prática, Marco Antonio ficou preso por pouco mais de um ano. Ele também lançou dois livros onde afirma ser inocente e vítima de um erro do judiciário.

Em 2008 o governo do Ceará reconheceu a demora para julgar e punir o caso de Marco Antonio, concedendo uma indenização para Maria da Penha.

Ilustraçao: Paula Sífora
Ilustraçao: Paula Sífora

Desdobramentos

Foram criados projetos de lei que tentaram enfraquecer a Lei Maria da Penha, mas, devido à ação conjunta da própria Maria com movimentos feministas e instituições governamentais, a lei nunca sofreu retrocessos.

Seu maior impacto talvez seja em relação ao entendimento da gravidade da violência. Antes da lei entrar em vigor, a violência doméstica e familiar contra a mulher era tratada como crime de menor potencial ofensivo e as penas geralmente se reduziam ao pagamento de cestas básicas ou trabalhos comunitários.

Para além de punir os agressores, a lei formaliza a necessidade de criação de políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às vítimas e estabelece a promoção de programas educacionais

A lei, considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das mais avançadas do mundo para o combate à violência contra a mulher, também estabelece a definição do que é a violência doméstica e familiar, bem como caracteriza as suas formas.

Ilustração: Benedetto Cristofani

 

Os tipos de violência

Como disse a Dra. Valéria Scarance, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado de São Paulo, a violência contra a mulher não é apenas física, nem começa diretmente aí. A violência costuma escalar, começando de forma mais “branda” e se intensificando até chegar às suas expressões mais graves como a lesão corporal ou o feminicídio.

São considerados 5 tipos de violência contra a mulher:

Física – qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher. O levantamento “Visível e Invisível – a vitimização de mulheres no Brasil” aponta que na pandemia 8 mulheres foram agredidas fisicamente por minuto.

Psicológica – A violência mais comum e talvez a mais difícil de comprovar. São consideradas formas de violência psicológica ameaças, constrangimentos, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, perseguição, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação. O Instituto Maria da Penha também considera como violência psicológica a prática de distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade (gaslighting).

Recentemente foi aprovado no Senado um projeto de lei que torna crime a violência psicológica contra a mulher e que pode levar o agressor à reclusão de seis meses a dois anos além do pagamento de multa. A pena pode ser maior se a conduta constituir um crime mais grave. O PL ainda depende de sanção presidencial. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública 13 milhões de mulheres foram vítimas de violência psicológica no Brasil nos últimos 12 meses.

Sexual – estupro, obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, impedir o uso de métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar, forçar matrimônio, gravidez ou prostituição por meio de coação, chantagem, suborno ou manipulação e limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

Em 2020, foram registrados 60.460 estupros e estupros de vulnerável, uma queda de 14,1% dos casos notificados em relação ao ano anterior, o que não significa que não tenham ocorrido mais, mas é possível que tenham sido subnotificados. Em 85% dos casos o crime é cometido por pessoas próximas da vítima, familiares ou pessoas de confiança. E 60,6% das vítimas tinham no máximo 13 anos.

– Patrimonial
– qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos. Deixar de pagar pensão alimentícia é considerado violência patrimonial.

Essa forma de violência tira a autonomia da mulher e muitas vezes a torna refém de uma situação onde está vulnerável a outros tipos de violência. Cerca de 25% das mulheres apontaram a dificuldade de garantir autonomia financeira como principal fator de vulnerabilidade à violência durante a pandemia.

Moral -qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (Exemplos: acusar a mulher de traição, críticas infundadas, exposição da vida íntima, tentar rebaixar a mulher através de xingamentos que incidem sobre sua índole, desvalorizar a vítima pelo modo dela se vestir, emitir juízos morais sobre sua conduta.)

Em 2020 o país teve 3.913 mortes violentas de mulheres, das quais 1.350 foram registradas como feminicídios, um aumento de 0,7% em relação ao na anterior. Entre as vítimas, 74,7% tinham entre 18 e 44 anos, 61,8% eram negras e 81,5% foram mortas por companheiros ou ex-companheiros.

A importância de não julgar

É fácil falar “nunca deixaria alguém encostar a mão em mim” ou “nunca aceitaria ser tratada desse jeito” quando estamos fora da situação. Entre as mulheres que são vítimas da violência e estão fragilizadas, muitas nem reconhecem estar em um relacionamento abusivo.

Variados fatores contribuem para que uma mulher permaneça em uma relação não saudável ou no ciclo da violência.

Ela pode ter vergonha de contar para outras pessoas, pode ter medo do parceiro tentar se vingar contra ela ou seus filhos, pode sofrer pressão social para manter o relacionamento, pode estar profundamente envolvida e acreditar de forma sincera que o seu parceiro pode e quer mudar (algo bastante comum na chamada “fase da lua de mel”). Ela pode depender dele financeiramente. Sem contar que a autoestima sempre fica abalada. Muitas acreditam em coisas que os parceiros falam como “você não tem valor” ou “ninguém vai te querer”. Com esse nível de fragilização, não é raro que elas tentem se convencer de que algumas ações ou atitudes não são abusos. E muitas relatam que é difícil você ter consciência do está passando enquanto ainda está acontecendo. Às vezes elas só enxergam isso com a distância.

 

E o que podemos fazer para ajudar?

Quando a vida e a integridade física de uma mulher que conhecemos está em risco, é nosso dever sim denunciar. Em briga de marido e mulher, a gente salva a mulher. Isso pode ser feito pela Central de Atendimento à Mulher pelo 180, pelo Disque 100 (Disque Direitos Humanos para menores de idade, idosos e outros vulneráveis), pelo plantão da Polícia Militar no 190, ou pelo telefone da Delegacia da Mulher da sua cidade.

Mas também podemos ajudar nos casos que não se enquadram em denúncia.

Nem todo relacionamento abusivo vai se tornar uma agressão física, mas todo caso de agressão vem de um relacionamento abusivo.

Ajudar uma amiga a enxergar que o seu relacionamento não é saudável é uma grande passo para romper ou evitar o ciclo da violência.

Mesmo que ela não demonstre, todo o apoio que você puder dar é sim bem-vindo.

“O amor não deveria doer” Crédito: Unsplash/Sydney Sims

 

Escute mais. Quando uma amiga se queixar de seu parceiro não a critique, mesmo se você souber que a situação que ela está falando é recorrente e no passado ela já perdoou. Você precisa demonstrar que está lá para ela e contribuir para o processo de conscientização de que há uma saída.

Não pressione. Por mais claro que esteja para você que aconteceu uma situação abusiva, talvez para sua amiga isso não seja tão óbvio assim. Sem contar que ela está envolvida na situação. Não atropele o processo dela porque isso pode ter o efeito contrário dela sair da situação.

Não se afaste. Um mecanismo comum em uma relação abusiva é que a vítima seja afastada de seus outros relacionamentos e de sua rede de apoio. Quanto mais sozinha ela estiver, mais vulnerável ela fica. Não desista da sua amiga.

Recomende que ela procure ajuda profissional. Mesmo quando nossos amigos e família nos falam que algo não é bom, nosso cérebro pode fazer de tudo para tentar justificar aquilo que queremos acreditar. Nada melhor que um psicólogo ou terapeuta que não faz parte do convívio para dar uma orientação externa.

Coloque ela para cima. Vítimas de violência são frequentemente atacadas por sua aparência, por sua capacidade e têm sua autoestima destruída. Lembre-a de seus potenciais e de que ela é capaz de fazer tudo aquilo que deseja.

“Juntas somos mais fortes”

E para todas nós, é sempre válido lembrar que o amor é construtivo.

É um sentimento que liberta, não que poda.

Ciúmes nunca será demonstração de afeto ou de preocupação.

Nada do que fizermos justifica sermos mau tratadas ou agredidas.

A culpa nunca é nossa.

Não devemos aceitar violência física ou psicológica por medo de ficarmos sozinhas.

E sempre, sempre sempre existe uma saída.

Não aceite nada menos do que ser feliz, sozinha ou com alguém.

 

“Onde há justiça, há cura”

 

Para ler mais:

Por que tantas mulheres continuam em relacionamentos abusivos?

O relacionamento abusivo ao qual você sobreviveu pode salvar outras mulheres, um passo a passo

Em briga de marido e mulher, a gente salva a mulher